Em uma calçada antes ociosa, um brinquedão feito de pallets. Por cima do cinza dos muros, desenhos e pinturas coloridas. Essas são algumas das ações feitas em bairros de São Paulo pela CriaCidade, uma consultoria em projetos sociais e urbanos que transforma o espaço público através do olhar da criança. “Nossa missão é promover e fortalecer a participação social de todos os habitantes para ter uma cidade mais humanizada, sustentável, criativa e brincante”, explica a fundadora Nayana Brettas.
O nome da iniciativa traz o “cria” de criança, de criatividade e de uma nova cidade como “cria” para as próximas gerações. Nayana acredita no poder transformador do olhar solidário das crianças. “Elas não pensam só em si, mas na cidade como um todo. Falam que no parque precisa ter um banquinho para as mães sentarem e conversarem, e rampa para idosos e os cadeirantes.”
A visão do brincar é outra contribuição importante – algo que os adultos acabam perdendo com suas travas e inseguranças. “O ser humano é lúdico, e a criança retoma isso no adulto. Imagina que divertido em vez de descer a escada do metrô, poder escorregar e ter um momento de alegria naquele seu dia cansativo?”
Criança Fala e a cidade escuta
Para dar voz às ideias das crianças, Nayana usa uma metodologia de escuta em que o adulto sai de sua zona de conforto e mergulha de cabeça no universo infantil. “A ideia é se apropriar do momento em que as crianças estão brincando em uma casinha, por exemplo, e pedir para contar uma história. Assim elas trazem vários repertórios importantes.”
Essa é uma das atividades do Projeto Criança Fala, criado para incluir a perspectiva das crianças na elaboração e execução de políticas públicas, projetos arquitetônicos e gestão de espaços e esquipamentos. É por meio da brincadeira, a melhor forma de comunicação das crianças, que o adulto consegue entender o que elas precisam e querem no espaço público.
Os familiares e professores recebem formação prática para escutar e registrar o olhar da criança sem induzir ou limitar sua expressão. Com os registros das atividades, a equipe da CriaCidade produz um relatório com ideias de como transformar os espaços com os recursos disponíveis no local.
E não é fácil mudar a cabeça dos adultos. Durante um projeto em escola, um dos alunos disse que queria uma praia ali. Imediatamente, o professor contestou: “Tá vendo? Não dá para ouvir as crianças”. Mas na investigação pela escuta, o menino explicou que só queria fazer castelos de areia com um baldinho de água. “Ele mesmo deu a solução. Na escola já tem o tanque de areia, porque não colocar uma torneira? É o simples”.
Pequenos atores sociais
O interesse de Nayana pelo universo infantil começou no ensino médio, em um projeto da Fundação Abrinq de mediação de leitura na escola. Ela cresceu, se formou em sociologia e passou a nutrir o sonho de dar voz às crianças. “Sempre me incomodou muito a gente pensar e decidir pelas crianças sendo que elas também são atores sociais.”
O primeiro passo para mudar essa realidade foi publicar a tese A Cidade (Re)Criada pelo Imaginário e Cultura Lúdica das Crianças – Um Estudo em Sociologia da Infância [.pdf], em 2009 como conclusão do mestrado em Sociologia da Infância, na Universidade do Minho, em Portugal.
A primeira experiência de escuta aconteceu em Brasília, em 2013, quando Nayana foi convidada para participar do desenvolvimento do Plano Distrital pela Primeira Infância. Somado à sua experiência de dez anos em projetos com crianças, estava de pé a base para a fundação da CriaCidade.
Construção da rede de parceiros
A visibilidade da conquista em Brasília trouxe os primeiros parceiros: a United Way Brasil, representante nacional da maior organização de filantropia do mundo, que apoiou o Projeto Criança Fala em quatro escolas, e a Faculdade de Arquitetura da Belas Artes, com o curso “O Olhar e a Voz da Criança nos Projetos de Arquitetura”, ambos em fevereiro de 2014.
Os alunos da Belas Artes foram peça fundamental no projeto Escuta Glicério, uma iniciativa da Subprefeitura da Sé e do Programa São Paulo Carinhosa em parceria com a CriaCidade, para reformar uma pensão no Glicério, bairro da região central de São Paulo. Eles fizeram a escuta das crianças e projetaram uma praça que contemplasse os desejos delas para o espaço.
A ação começou em 2015 e foi um grande desafio. “O Glicério era meio paralisante para mim inicialmente. Ver aquelas crianças no meio do esgoto, dos ratos. O território era tão complexo que eu achava que só começando tudo de novo”. O poder público não tinha verba para bancar nem o material das oficinas com as crianças, e logo Nayana percebeu que precisava ir além para resolver os problemas do bairro.
Decidiu procurar a Fundação Bernard Van Leer, que investe em iniciativas voltadas para a infância no mundo inteiro, e apresentou uma proposta de escuta das crianças para transformar não apenas uma, mas seis habitações coletivas, e fazer ações em escolas, postos de saúde, comércio e espaço público, com o objetivo de reduzir a violência e violação dos direitos das crianças do Glicério.
Como é possível viver disso?
Um ano depois, conseguiu um patrocínio de mais de 500 mil reais para dois anos de ações. O que era para ser um alívio rapidamente se transformou em pesadelo. “Eu não tinha empresa aberta, só tinha previsto 10% de imposto e precisei pagar 20%. Não tinha de onde tirar isso. Pensei em cancelar o contrato, era muita responsabilidade. Me perguntava como as pessoas levantavam um projeto sem dinheiro, e como faziam para viver disso.”
Com a ajuda de pessoas que acreditaram no projeto e prestaram serviços sem cobrar, Nayana conseguiu colocar a casa em ordem a tempo de receber a verba. Já era o início do modelo de colaboração que garantiria o sucesso da CriaCidade com ou sem patrocínio. “Dinheiro é uma ilusão. É mais difícil, mas dá para fazer tudo sem. E com dinheiro fácil, você não estimula a sua criatividade e nem consegue criar uma rede de apoio, integrar e conhecer pessoas.”
A colaboração que sobrepõe o conflito
Nem os 500 mil da Fundação Bernard Van Lerr foram suficientes para viabilizar os desdobramentos do Escuta Glicério. Eventos culturais, intervenções dentro e fora das pensões, formação profissional para a comunidade, conquista da confiança das pessoas em um território de conflitos, tudo isso só é possível com a mobilização de uma rede de parceiros que envolve universidade, empresa privada, gestão pública, organização social, comunidade e coletivos.
As mudanças na região aconteceram de dentro para fora. Primeiro, foram pequenas intervenções de grande impacto para dar identidade ao espaço, como grafitar as paredes das pensões com desenhos e imagens das crianças e criar espaços de brincar em cantinhos antes entulhados de lixo.
Em uma parte ociosa de uma calçada, foi instalado um brinquedão de pallet em parceria com o coletivo A Batata Precisa de Você. As crianças estouraram bexigas de tinta no muro e escreveram “Cantinho das Crianças”. “Elas começaram a cuidar desse espaço. No dia seguinte, os adultos entulharam o brinquedo, mas as crianças foram tirando. Logo os adultos também estavam ajudando a limpar”.
A intervenção chamou a atenção da comunidade e garantiu reconhecimento ao projeto. Com ações como essa, o Criança Fala criou novas possibilidades de convivência pacífica, o que diminuiu a vulnerabilidade social da região. Moradores que antes não conversavam passaram a frequentar juntos o brinquedão, os eventos ao ar livre e as oficinas de artesanato para as famílias, que acontecem todo mês. “Foi uma demanda deles, para ajudar na geração de renda”.
Um novo Glicério
Com o apoio da CriaCidade, o Glicério está transformando sua realidade a partir do olhar solidário e criativo das crianças. Um dos eixos do projeto é o fortalecimento de lideranças, tanto da comunidade como da rede local e da gestão pública, para que cada um saiba a quem recorrer, que papel desempenhar e como fazer a articulação entre essas redes. Assim os moradores podem perpetuar as ações mesmo depois do fim do projeto.
Parte da experiência do Criança Fala no Glicério foi consolidada em um documento publicado em parceria com o Instituto C&A. É o Mapa da Afetividade: O Glicério por suas crianças, que explica a metodologia de escuta e reúne depoimentos das crianças sobre seu olhar para as transformações no espaço.
Um dos planos de Nayana para o futuro do projeto é criar um modelo a ser replicado em outras regiões e, finalmente, transformá-lo em uma política pública. Mas você não precisa esperar: dê uma olhada nas informações abaixo para participar do projeto ou replicá-lo na sua comunidade.
FAÇA VOCÊ MESMO!
Quer fazer parte do CriaCidade ou criar uma iniciativa semelhante em sua comunidade? Essas informações vão te dar uma ideia mais concreta de como o projeto se estrutura
Como apoiar ou fazer parte?
As pessoas podem ser envolver nas ações de mutirão em projeto de transformações do espaço público realizados pela CriaCidade. As programações culturais que acontecem no Glicério também são abertas e qualquer um pode participar
Pessoas envolvidas:
Nos primeiros meses, Nayana cuidava de tudo sozinha. Hoje ela tem uma equipe de nove pessoas
Quem faz o quê:
Nayana é fundadora da CriaCidade e coordenadora do projeto Criança Fala. O administrativo fica a cargo da empresa Simpla e a MOVE Social faz a avaliação de impacto do projeto. Há ainda um contador, dois educadores, um designer gráfico, uma fotógrafa e um responsável pelo mapeamento do território e oficinas de mapa afetivo
Há quanto tempo existe:
Final de 2013
Materiais utilizados:
Materiais diversos de papelaria para as oficinas, como tinta, papel sulfite, livros, materiais recicláveis e canetinha, e equipamentos eletrônicos, como notebook, projetor, máquina fotográfica, caixa e mesa de som, e microfone
Metodologias:
Escuta lúdica da criança
Locais de intervenção:
Casa de Ismael, em Brasília, três escolas em São Paulo e uma em Louveira, comunidade do Glicério, Faculdade de Arquitetura da Belas Artes, seis habitações coletivas (cortiços) no Glicério, além de oficinas pontuais em escolas públicas e particulares
Serviços contratados:
Desenvolvedor de site, designer gráfico, administrativo e empresa de avaliação de impacto
Passo a passo:
Projeto Criança Fala:
- Mapeamento (identificação) dos equipamentos urbanos e dos atores do território
- Apresentação do projeto
- Aplicação dos instrumentais do diagnóstico
- Formação da equipe
- Formação das pessoas que irão mediar a escuta das crianças
- Formação da rede local de parcerias
- Formação dos profissionais da educação, saúde, assistência social
- Ativação da rede de parcerias
- Articulação com poder público
- Integração de todos os setores: poder público, empresas privadas, comunidade, organizações sociais, universidade
- Oficinas semanais de escuta com as crianças e famílias
- Visitas de acompanhamento mensais nas habitações coletivas, escolas, posto de saúde, CCA
- Formação de liderança: da comunidade, da rede local, da gestão pública
- Empoderamento da comunidade
- Avaliação de impacto do projeto
- Evento de encerramento: exposição de fotos, lançamento de vídeos e publicações
Problema inicial:
A criança não é considerada um ator social e por isso seu visão não é contemplada na criação de espaços públicos e privados da cidade. (melhorar)
Proposta:
Fazer a escuta lúdica das crianças para incluir o olhar solidário e criativo delas na elaboração e execução de políticas públicas, projetos arquitetônicos e gestão de espaços públicos e privados.
Parcerias:
- Faculdade de Arquitetura da Belas Artes
- Programa São Paulo Carinhosa
- Subprefeitura da Sé
- Diretoria Regional do Ipiranga
- Secretarias Municipais da Educação, Saúde, Assistência Social e Habitação
- Equipamentos públicos locais: escolas, posto de saúde, Centros para Crianças e Adolescentes (CCA)
- Instituto Kubayaschi
- Acupuntura Urbana
- Entre outras
Referências:
Sociologia da Infância com Manuel Jacinto Sarmento, o educador Vital Didonet, que atua na área de políticas públicas para a Primeira Infância, e as experiências de participação das crianças no Peru e em Bogotá, na Colômbia.
Como se sustenta financeiramente:
Apoio direto e patrocínios/apoios institucionais
Quanto custa?
Não há custo estimado, depende de cada projeto
Dificuldades:
Estruturar e administrar o projeto no início, enfrentar o comodismo das pessoas envolvidas nos projetos, e conseguir apoio dos órgãos públicos.
Planos para o futuro:
- Criar um modelo replicável do projeto Criança Fala (já começou, com o documento Mapa da Afetividade: O Glicério por suas crianças)
- Ter mais incidência nas políticas públicas
- Transformar a metodologia de escuta das crianças em política pública