Faço parte de uma geração que cresceu ouvindo que políticos eram todos iguais – corruptos e ineficientes –, que a televisão só tinha porcaria, que nossos hábitos alimentares eram péssimos, que videogame pode te destruir, que éramos apáticos e apolíticos, que não se produzia mais nada de bom artisticamente, que éramos preguiçosos, que nada no Brasil prestava ou mudava, que as pessoas eram mal-educadas e que gente que queria mudar o mundo era café-com-leite. Ao mesmo tempo, aprendemos que não se joga lixo no chão, não se desperdiça comida, não se maltrata as pessoas (nem os animais). E que tínhamos uma extrema liberdade para fazer o que quiséssemos da vida, algo meio que sem precedentes no Brasil. Faça o que você ama, escolha se quer ou não casar, se quer ou não filhos, se quer ou não casa própria e carro. Ou seja: aprendemos uma série de valores bacanas, mas com uma mentalidade de que tudo onde vivíamos, cidade e país, era ruim – e ruim continuaria. E nos vimos com um dilema conforme amadurecemos: por que as coisas precisam continuar ruins? Por que não posso usar o aprendizado rico da liberdade que me deram para fazer as coisas ficarem melhores?
Nos acostumamos cada vez mais a ter mediadores entre nós e o mundo: despachantes, contadores, secretárias, caixas postais, telemarketing, assessores, fornecedores, revendedores, importadores. A tal ponto que não sabemos mais por que as coisas são como são e o que seria necessário para mudá-las. E parece que para muitos está tudo muito bem assim. Adoram poder contar com seus “facilitadores”, ignorando que deixar sua marca no mundo passa também por saber como as coisas funcionam. Ficamos com as mãos atadas: não insistimos em soluções, porque é muito complicado e, muitas vezes, nem sabemos por onde começar. Isso gera um sentimento geral de impotência e consequente frustração, porque achamos que o esforço de mudança é em vão. E porque a inércia pode tanto impulsionar as pessoas a fazerem sempre ações cada vez mais legais, como pode estagná-las e mantê-las resistentes à mudança.
Mas a era de mediadores entre nós e o mundo e da estagnação está dando sinais de declínio. Essa nova geração não tem mais paciência para ficar parada e ouvir o mesmo lero-lero de sempre. Queremos soluções, e queremos elas agora. E mais: queremos participar dessa mudança, seja com nossa voz, nossa pressão ou nossas próprias mãos. É a época de um pragmatismo sonhador, por mais paradoxal que possa soar.
Esses novos ares da mudança não pairam apenas sobre o Brasil. No mundo inteiro observamos, de poucos anos para cá, um novo momento nas cidades – onde essa geração y, da qual me refiro, vive. Um grupo de pessoas que tiveram muito mais que seus pais, mas, ainda assim, tem o “fazer” e o “ser” como valor superior ao “ter”. As crianças que queriam mudar o mundo agora são consumidores, pais, chefes, eleitores, formadores de opinião. E por isso estão começando a ser ouvidos.
A mesma geração que foi chamada de preguiçosa, egoísta e apática é agora a que está colocando na prática uma série de ideias, trabalhando colaborativamente, com criatividade e propósito, e se engajando contra todos os níveis de problemas das suas cidades e do seu país. É essa geração que está ajudando a dar conta de um dos seis desafios colocados pela urbanista Raquel Rolnik para transformar as cidades: que o brasileiro passe a ver e a assumir o que é público como propriedade coletiva, sua e de todos da cidade. E como fazer as pessoas darem valor e se apropriarem de algo que, tecnicamente, é seu mas não entra no seu inventário, mesmo sendo uma herança coletiva para seus filhos e netos?
O primeiro passo é deixar de lado a crença de que a não-ação se trata de apatia. O canadense Dave Meslin, em uma brilhante exposição no TEDxToronto de 2010, defendeu que precisamos rever o conceito de apatia. Para ele, a apatia é feita de barreiras culturais que nos impedem de solucionar problemas. O mundo desestimula o engajamento, colocando obstáculos (e mediadores!) que fazem questões importantes parecerem desinteressantes, confusas, difíceis ou incompreensíveis pelas pessoas comuns – ou, ainda, alheias a sua vida. Isso acontece porque a política é vista muitas vezes como enfadonha, ineficiente e atrasada, os governos não interagem com os cidadãos (ao menos não de uma forma atrativa para as pessoas), a imprensa não presta o serviço de ajudar seus leitores a entender como eles podem interagir com aquilo de que está sendo falado, e também porque aquilo que é mais divulgado nem sempre é o mais importante em termos de interesse público.
A ocupação do espaço público precisa ser uma causa defendida pelas pessoas, e para isso a participação delas nesse processo de mudança precisa ser facilitado. Isso porque, se nos apropriarmos dos espaços públicos, iremos cuidar melhor daquilo que consideramos nosso. E, cuidando melhor, transformamos esses espaços em lugares onde de fato queremos passar parte do nosso tempo – temos orgulho e sentimos que fazemos mais parte de um espaço bonito e agradável, e que nós ajudamos a fazer. E quando passamos parte do nosso tempo nesses espaços públicos, reduzimos a cultura do medo, a violência, a dependência do carro (que cria barreiras entre as pessoas e a cidade), melhoramos a saúde pública, reduzimos o abismo das desigualdades sociais, aumentamos a empatia e nos aproximamos de uma cultura de paz, em que o conflito, iminente à cidade, seria utopicamente aceito. É um salto inclusive econômico: a ocupação do espaço público e o uso de transporte público ou não-motorizado comprovadamente melhoram as vendas dos estabelecimentos comerciais que tem saída direta para a rua. Mas isso é algo que tem pouco efeito na teoria: o ser humano aprende com o que vê, experimenta e consegue estabelecer vínculo com, muito mais do que aquilo que ouve, da teoria abstrata.
Como Annie Leonard ensina em seu vídeo Story of Change, são necessários três elementos para mudar as regras do jogo: ideias, colaboração e ação. E essas pequenas ações, segundo ela, são essenciais para praticar e fortalecer os músculos da cidadania. Músculos esses que vão escolher melhor seus candidatos políticos e travar pequenas lutas no dia a dia como parte de uma grande mudança. Nada é pequeno demais para não ser importante: as pequenas ações são capazes de alterar o cerne das macro-estruturas, culturas e mentalidades.
É nesse contexto em que chega o Formiga.me. Acreditamos que pequenas ações feitas pelas pessoas no lugar onde moram fazem com que elas se envolvam mais com o espaço público e fortaleçam sua comunidade, e consequentemente – com um trabalho de formiguinha – a cidade. Se mudarmos o jeito como as pessoas se enxergam dentro do espaço urbano compartilhado, mudará também a percepção das pessoas sobre o lugar e o uso que fazem dele.
Inspirada por diversas histórias, como a do Better Block, de Jason Roberts em Dallas, e por conceitos inovadores, em especial do Design Thinking – metodologia inovadora de resolução de problemas –, criei essa plataforma com o objetivo de dar ferramentas e informações para as pessoas fazerem pequenas ações transformadoras em suas comunidades e, coletivamente, mudar a cidade em que habitam. O site é um trabalho que vem amadurecendo desde o início de 2013, para finalmente ir ao ar em setembro de 2015 – desde junho com a mais nova membro desse formigueiro, a querida sócia Fernanda Carpegiani, que compartilha comigo as mesmas inquietudes e formigamentos.
O Formiga.me é um site de conteúdo que compartilha iniciativas transformadoras de pessoas no espaço público urbano. E como desde o princípio a ideia era fazer uma plataforma que levasse as pessoas à ação, as reportagens vão acompanhadas de informações sobre como interagir com essas iniciativas ou mesmo replicá-las, adequando-as à sua realidade. Convido todos a participar desse movimento sem volta e a unir esforços para melhorar a vida das pessoas nas cidades!